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JBO - Jornal Brasileiro de Oftalmologia              36            Nº 211 - Outubro/Novembro/Dezembro - 2025




           UM OUTRO OLHAR




      zas”. Assim, essas telas passaram a ter o nome Tereza
      como título. Ou Rapunzel, pois me lembravam da fábula
      e porque muitos assim me chamavam na infância, pelas
      longas tranças. Então, fui constatando que era das me-
      mórias afetivas e do inconsciente que emergiam minhas
      criações. Como meu trabalho é derivativo, a pintura da
      trança de tecidos, me levou às tranças de cabelos e, num
      insight, comecei a desenhá-las e nunca mais elas pararam
      de brotar no meu trabalho, em pinturas, desenhos, bor-
      dados, imagens digitais, ou, eles próprios, materialmen-
      te, em instalações. Como os tecidos, cuja origem estava   Obra “Um pouco sempre vaza pelos poros”, da série “Terezas”, acrílica
      na minha relação com minha mãe, os cabelos me mar-      sobre linho, 112cm x 170,5cm (díptico), 2013.
      caram quando menina pois, “desobedientes”, tinham        Há um componente do onírico muito forte em algumas
      que ser domados em tranças e coques apertados. Rela-     de suas obras. Qual o peso do real no seu trabalho?
      cionando-os às memórias afetivas, minha avó, que fazia   E como pensa as questões do íntimo, do doméstico?
      minhas roupas, também aparava meus longos fios, com      A forma como percebemos o mundo é construção sub-
      sua grande e pesada tesoura de costura.                  jetiva de cada consciência, a partir da sua experiência no
                                                               mundo. Meu trabalho, impregnado desse conceito, dia-

      Em sua produção você também persegue as texturas         loga com o mundo, enquanto subjetivação. Procuro criar
      dos tecidos, as padronagens. As cenas despertam di-      a partir de um aparente realismo, uma dimensão onírica,
      ferentes sensações, memórias. O que te interessa nes-    metafórica, simbólica e poética, com atmosfera psicoló-
      sas criações? O que deseja transmitir ao espectador?     gica, sempre aberta ao imaginário e ao lúdico. Tensio-
      Os elementos do universo feminino, que povoaram for-     no imagens, aparentemente familiares e cotidianas, com

      temente minha infância, foram fundamentais na constru-   algo de estranho, buscando um universo de fábulas que
      ção de minha própria identidade. Linhas, moldes, riscos   provoque o espectador a fazer suas próprias associações
                                                               e projeções afetivas, para que memórias pessoais ou fic-
      e tecidos eram elos que facilitavam a troca de experiên-
                                                               ções possam ser imaginadas com seus próprios signifi-
      cias e afetos, elementos de ligação entre as mulheres
                                                               cados. Gostaria que minha arte pudesse ser um espelho
      da família. Eu, menina, vivia imersa em montanhas de
                                                               ou ponte para que o espectador acessasse seu próprio
      tecidos, cujas estampas eram flores daquela minha pai-
                                                               imaginário. Como meu trabalho é intuitivo e ligado às
      sagem doméstica. Também me encantava como minha
                                                               memórias afetivas, é inevitável que se referencie ao ínti-
      avó, magicamente, cortava e montava as roupas que eu     mo e ao doméstico, seja pelas cenas familiares, tecidos,
      idealizava, direto no meu corpo. Marcas profundas, la-   tranças, seja pela produção de uma atmosfera, numa po-
      ços de afeto. Ao começar a pintar e acessar profunda-    ética da intimidade.
      mente meu imaginário, as paisagens de tecidos, assim
      como o tecido, como um corpo, estavam guardadas lá.      Nas artes em geral discute-se muito se de fato há um
      Assim, transformei-os num vocabulário para contar his-   marcador do feminino na linguagem, se há uma arte
      tórias e transmitir sensações. O que um artista tem para   feminina. Como percebe essa questão e como o femi-
      oferecer é sua singularidade. Então, desejo que minhas   nino integra seu discurso e seu gesto?
      obras toquem as pessoas em suas memórias afetivas e      As minhas questões não são exclusivamente femininas e,

      que elas possam ressignificar seu sentido.               sim, de natureza existencial. No entanto, ao me utilizar de
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