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JBO - Jornal Brasileiro de Oftalmologia              37            Nº 211 - Outubro/Novembro/Dezembro - 2025










      um “vocabulário” e de uma sensibilidade do feminino,     Como é seu processo criativo? O que  te provoca a
      deixo claro que é uma subjetividade desse universo, que   criar em seu cotidiano?
      está a comunicá-las. Então, mesmo que não se veja na     Olhar e ver. Verbos similares e, no entanto, diferentes.
      minha obra, uma militância feminista, assumo o femini-   Ver é quando o olhar enxerga com atenção e percepção
      no como meu lugar, não só por uma contingência, mas      ativa, o que demanda um aprendizado desse olhar. Nós,
      como posicionamento político. Entretanto, quando digo    artistas, sempre procuramos (consciente ou inconscien-
      que meu trabalho se refere “ao Feminino”, estou ciente   temente) ver um algo a mais no mundo à nossa volta,
                                                               ou no nosso mundo interior. Eu estou sempre à procura
      que não existe “um feminino” como subjetividade úni-
                                                               de que o ato de olhar seja o de revelar, também, com a
      ca. Mais correto seria dizer que minha obra fala a partir
                                                               intuição, para além da percepção dos sentidos e da razão
      de uma perspectiva que pertence ao universo feminino.
                                                               analítica. Esse desejo de que algo do mundo se revele e
      Gostaria que meu trabalho contribuísse para a conquista
                                                               o diálogo que com isso estabeleço é o que me impulsio-
      de mais espaço e respeito, para que mais e mais subjeti-
                                                               na a criar. No meu caso, o processo criativo (sempre di-
      vidades (femininas e outras) se manifestem na construção   ferente e pessoal) é um tanto caótico, sem método, nem
      de um mundo mais diverso, menos intolerante e violen-    linearidade. É processo constante, ativado por coisas re-
      to. Novas possibilidades de subjetivação e construção de   levantes ou banais, como sonhos, objetos, cenas vistas
      mundo se fazem necessárias e urgentes.                   ou vividas, fotos, leituras, filmes etc. Essas experiências
                                                               vão suscitar questões, ativar memórias ou desencadear

      Como é sua relação com as cores? O que define            livre-associações. Vivo “em processo” todo tempo. Ten-
      sua paleta?                                              tando compreender o que me instigou, seu sentido e seu
      É curioso que antes de me dedicar à pintura, o que fiz   significado. Parto para desenvolver aquela ideia ou vagas
      relativamente tarde, quase vinte anos depois de forma-   imagens mentais, que vão se transformando, no proces-
      da em Belas Artes, sempre fui mais atraída pelo preto    so da pintura, adquirindo ou mudando significados até
                                                               que eu, simplesmente, as reconheça. Nesse momento,
      e branco. Talvez por gostar tanto do desenho, que até
      então, era meu meio de expressão usual. As cores apare-  em que não há mais o que acrescentar ou retirar, numa
      ciam por meio da aquarela, ou do lápis de cor, mesmo na   epifania, sei que um trabalho está acabado. Essa é minha
                                                               maneira de fazer arte, o jeito que inventei como forma de
      época em que ilustrei livros. Mas, com o amor repentino   elaborar e dialogar com a vida.
      pelas tintas, veio junto essa nova paixão, muitas vezes
      usando cores opostas e de marcantes contrastes. Mesmo
      que a paixão pelo desenho resista, e recorrentemente a
      ele eu volte, através dos desenhos das tranças, a neces-
      sidade de usar a cor, e de através dela me comunicar,
      tornou-se irresistível. Tenho trabalhos em que a paleta se
      apresenta mais limitada, no caso da motivação que vem
      de alguma cena ou objeto real, mas normalmente as es-
      colhas são intuitivas. Dificilmente faço um estudo sobre
      ela, e quando há uma ideia prévia, não me prendo a ela,
      deixo fluir. Às vezes, num trabalho, algum elemento entra
      na composição porque a tela “pede” alguma cor, aqui
      ou ali, e o tal elemento acaba entrando, primeiro, como
      um corpo para a cor e, só depois, venho perceber, como
      ele fazia falta ali. Aprender a ouvir a pintura é aprender a   Obra “Em fluxo, entre montanhas, cavernas, ondas, vales, ninho. Deva-
                                                              neio...”, da série “Talvez corpo, talvez paisagem e Sobrelinho”, acrílica
      ouvir nosso inconsciente.                               sobre linho, 125cm x 180cm, 2020/2025.
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